quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

El Orfanato (Juan Antonio Bayona, MEX/ESP, 2007)

El Orfanato é daqueles filmes sobre os quais é muito difícil escrever, pois todas as revelações que pode-se fazer sobre a trama -- mesmo que inconscientemente -- podem tirar a graça da surpresa final. O filme de estréia do espanhol Juan Antonio Bayona bebe na fonte dos clássicos filmes de suspense e amarra o ambiente de terror com um roteiro inteligente que lembra os ótimos The Sixth Sense (M. Night Shyamalan, 1999) e The Others (Alejandro Amenábar, 2001). O filme tem um padrinho e tanto. Ele é apresentado e produzido por Guillermo Del Toro, de El Laberinto del fauno (2006) e Hellboy (2004).

O filme ganhou, entre outros prêmios, Melhor Filme e Melhor Diretor Revelação, no Festival de Barcelona.

El Orfanato consegue fazer uma coisa difícil para filmes de gênero: ele repete lugares-comuns e fórmulas prontas de uma forma fresca, que parece soar como novidade. Assim, quando somos surpreendidos com a imagem de uma criança que aparece subitamente no fundo de um corredor escuro vestida com uma roupa estranha, realmente apertamos mais firme o braço da poltrona ao invés de dar uma risada do tipo "oh-que-surpresa!".

"Um conto de amor. Uma história de terror." Essa é a tag do filme. Prova de que Bayona e o roteirista Sergio G. Sánchez não querem apenas dar sustos, mas atingir um alvo um pouco mais complexo. O filme conta a história de uma mulher (Belén Rueda) que decide voltar para a casa onde foi criada para transformá-la em um orfanato para crianças doentes. Seu filho adotivo, Simón (Roger Príncep), a acompanha e logo faz um amigo invisível. Tudo muito normal.

Pelo menos até que o amigo imaginário, Tomás, começa a atemorizar a família aparecendo com um saco que estopa apodrecido cobrindo a sua cabeça. Um dos fantasmas mirins mais assutadores já criados.

Preste atenção no uso magistral que Bayona faz do contraste entre claro e escuro para dar dramaticidade às cenas. E na atuação de Geraldine Chaplin como a assistente social esquisita e assustadora que surge no orfanato.


sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Aniversário da primeira projeção de cinema

No dia 28 de dezembro de 1895, no Salon Indien du Grand Café, em Paris, os irmão Lumière (Auguste Marie Nicolas e Louis Jean) realizaram a primeira projeção pública de filmes.

Na ocasião dez filmes foram projetados, sendo o primeiro La Sortie de l'Usine Lumière à Lyon, considerado o primeiro filme da História. Cada um dos pequenos filmes tinha algo em torno de 46 segundos (17 metros de película). Ao lado, o pôster do evento.

Além dos documentários da vida cotidiana do povo de Lyon e Paris, os Lumière, fizeram a primeira ficção em filme: Le Jardinier (O Jardineiro, ou O Regador Regado).

Os filmes projetados na ocasião foram (em ordem):
  1. La Sortie de l'Usine Lumière à Lyon (46s)
  2. La Voltige (46s)
  3. La Pêche aux Poissons Rouges (42s)
  4. Le Débarquement du Congrès de Photographie à Lyon (48s)
  5. Les Forgerons (49s)
  6. Le Jardinier (49s)
  7. Le Repas (de bébé) (41s)
  8. Le Saut à la Couverture (41s)
  9. La Place des Cordeliers à Lyon (44s)
  10. La Mer (Baignade en mer) (38s)

Na edição abaixo, estão alguns dos filmes projetados no Grand Café e alguns outros feitos pelos Lumière na mesma época, mas que não participaram daquela primeira demonstração, como o famoso L'Arrivée d'un Train en Gare de la Ciotat, que teria provocado pânico na audiência, pois as pessoas acreditaram que poderiam estar correndo perigo de serem atropeladas pelo trem.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

There Will Be Blood (P. T. Anderson, EUA, 2007)

Depois de provar que é um dos melhores diretor em Hollywood com menos de 40 anos com filmes urbanos e contemporâneos como Sydney (1996), Boogie Nights (1997) e Magnolia (1999), Paul Thomas Anderson se lança em um épico para contar uma parte peculiar na história norte-americana: a corrida do petróleo.

Baseado levemente no romance de Upton Sinclair, Oil!, There Will Be Blood conta essa corrida no Sul da Califórnia no final do século XIX. Mas a qualidade do roteiro é incrível quando percebemos, somado ao relato histórico, dezenas de referências bíblicas sobre inveja e ganância. Daniel Day-Lewis interpreta magistralmente Daniel Plainview, um especulador de petróleo que vai furar poços e encarna o próprio estereótipo do monstro capitalista sem escrúpulos que deseja ardentemente enriquecer na "terra das oportunidades". No deserto californiano, não há um Deus benevolente, apenas o óleo negro e a fúria pela riqueza.

A alegoria do filme é sobre o início do Século Americano. E é sobre como essa soberania de riqueza foi construída sobre os ombros de alguns homens que beiraram o fanatismo ao construir suas fortunas diante da vontade e do trabalho.

A parcela íntima do filme é composta pela relação entre Plainview e H.W. (o estreante Dillon Freasier). Surgido misteriosamente como o próprio petróleo do deserto, o garoto terá uma relação filial com Plainview, que chegará próxima de ser carinhosa. Mas detonará também o conflito entre a ganância e a culpa, a cobiça e o pecado, que assombra a trama do filme.

Essa trama de desenrola a partir do momento em que Plainview segue com H.W. para o Sul da Califórnia com o intuito de comprar novas terras para a prospecção de petróleo. As belas cenas de petróleo jorrando dos poços, destruindo as torres de perfuração e inundando a terra de negrume e riqueza trazem também a inquietação para a ignorante população local. Extremamente pobre, esse povo vê em Plainview um salvador. E esse papel será ameaçado quando Eli Sunday (Paul Dano) chega na comunidade para "espalhar a palavra de Deus".

There Will Be Blood sem dúvida é um filme mais interessante para o público norte-americano que vê um dos alicerces da construção de sua nação desmistificados cruamente. Para os brasileiros, é mais um ótimo filme de P. T. Anderson, original e incrivelmente bem realizado.

Esse filme é muito mais linear e pode parecer aos olhos da audiência menos interessante do que os anteriores de Anderson. Mas isso se deve a uma avaliação apressada. Na verdade, Anderson parece estar mais à vontade e podendo abrir mão de um exagero autoral. Todo o filme soa perfeito e bem acabado, lembrando muito Robert Altman, com quem Anderson trabalhou no último filme do grande mestre, A Prairie Home Companion (2006).

Preste atenção na grande atuação de Daniel Day-Lewis, que parece ter se apropriado da alma de Plainview, como fez em Gangs of New York (2002). E na seqüência inicial do filme, cujas imagens no deserto remetem ao começo de 2001: A Space Odyssey (1968), de Stanley Kubrick.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Estrelas se calam em apoio à greve de roteiristas

Alguns dos melhores atores de Hollywood (e dos mais engajados) participaram de uma das mais criativas formas de protesto usadas até agora pelos roteiristas norte-americanos, em greve por uma melhor participação nos lucros dos estúdios e TVs com a venda de conteúdo na internet e em DVD.

A campanha, batizada de Speechless, tem até agora 28 episódios, que podem ser conferidos na página oficial da greve. Nos vídeos, os atores aparecem encenando situações sem ter roteiros para seguir ou falando em línguas incompreensíveis. Nas mais bonitas aparições, os astros e estrelas simplesmente ficam mudos diante das câmeras.

Abaixo, alguns dos melhores vídeos:







segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

"Estamos todos em perigo", última entrevista de Pier Paolo Pasolini

Essa entrevista aconteceu na tarde do sábado 1o de novembro de 1975, poucas horas antes do assassinato do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini. O título foi sugerido pelo próprio Pasolini ao entrevistador Furio Colombo. No final da conversa, Pasolini disse ao entrevistador: “Eis a semente de tudo, o sentido de todas as coisas. Você nunca sabe quem, nesse exato momento, pode estar pensando em matar você. Use isso como título da entrevista, se quiser: ‘Estamos todos em perigo’”.

Pergunta - Pasolini, nos seus artigos você já deu diversas declarações sobre as coisas que detesta. Você já levantou bandeiras solitárias contra tantas coisas: instituições, marcas, pessoas e poder. Para simplificar as coisas, eu vou chamar tudo isso de “situação”, que seria todas as coisas contra as quais você já se bateu. Permita-me propor uma objeção. A “situação”, com todos os males que você vê nela, também tem todos os elementos que fazem Pasolini possível. O que eu quero dizer é que, mesmo com todo o seu talento e mérito, as ferramentas são dadas pela “situação”: publicidade, cinema, organização, mesmo objetos. Façamos de conta que você é mágico. Com um pequeno gesto seu, tudo que você detesta desaparecesse. O que seria de você então? Não ficaria sozinho e sem todas as ferramentas de expressão que necessita?

Pier Paolo Pasolini - Eu entendo. Mas eu não apenas tento alcançar esse estágio de mágica, eu acredito nele. Eu acredito que se possa ficar batendo com um dedo em uma parede até que toda a casa venha abaixo. Podemos ver um pequeno exemplo disso no Partido Radical [partido italiano de extrema esquerda fundado em 1955 e tranformado, em 1989, no Partido Radical Transnacional], um amontado de gente capaz de influenciar todo o país. Você bem sabe que eu não concordo com eles, mas eu estou indo agora mesmo para a conferência deles. Mais do que tudo, é a História que nos dá os melhores exemplos. Contestação tem sempre sido de fundamental importância. Santos, heremitas e intelectuais, os poucos que fizeram História, foram aqueles que disseram “não”, não foram os assistentes dos nobres e dos cardeais. Então, para ser direto, contestação deve ser em grande escala, ampla e total, “absurda” e sem bom senso. Não pode apenas se apresentar sobre esse e aquele ponto. Eichmann tinha muito bom senso. O que faltou para ele então? Ele não disse “não” de forma clara e direta logo no início, quando ele era ainda um mero administrador, um burocrata. Ele devia ter dito para algum dos seus amigos: “Eu não gosto mesmo de Himmler”. Ele devia ter sussurrado alguma coisa, vazado algo como acontece em agências de publicidade, em redações de jornal, no segundo escalão de governos. Mas ele nunca parou a máquina. Então há três pontos a se ver: o que é isso que você chama de “situação”, por que devemos escolher saldar ou destruí-la, e como.

Pergunta - Bem, descreva a “situação”, então. Você sabe muito bem que as suas observações são como o sol brilhando através da poeira do ar. É uma imagem bonita, mas as coisas às vezes são pouco claras.

Pasolini - Eu agradeço pela imagem, mas espero bem menos do que isso. Tudo que eu quero é que você olhe em volta e note a tragédia. Qual é a tragédia? É que não há mais seres humanos; só existem algumas máquinas estranhas que colidem umas com as outras. E nós, intelectuais, olhamos para horários de trens antigos e falamos: “Estranho, não deviam esses trens seguir por esse caminho. Como eles puderam bater desse jeito? Ou o engenheiro ficou louco ou ele é um assassino. Ou, melhor ainda, tudo isso é uma conspiração”. Nós sempre gostamos de teorias da conspiração, porque elas nos aliviam de ter de lidar com a verdade. Não seria maravilhosos se, enquanto nós conversamos aqui, alguém no porão estivesse planejando nos matar? É tão fácil, é tão simples, e é a resistência. Nós podemos perder alguns amigos, mas nós acabaremos juntando as nossas forças e varrendo todos para fora. Um pouco para nós, um pouco para eles, você não acha? E eu sei que quando eles mostram Paris em chamas na TV, todo mundo senta com lágrimas nos olhos, desejando apenas que a História se repita, mas de forma limpa e bonita. O efeito do tempo é que ele lava tudo, deixa tudo limpo, como a chuva sobre as paredes das casas. É simples, eu estou deste lado e você está do outro. Não vamos fazer piadas sobre o sangue e a dor com que as pessoas pagaram para ter opções. Mas vamos admitir que era mais fácil lutar naquela época. Com coragem e consciência, um homem normal sempre poderia rejeitar uma Salò fascista ou uma SS nazista, mesmo que fosse no seu interior (onde todas as revoluções têm início). Mas hoje em dia é diferente. Alguém pode chegar caminhando na sua direção vestido como um amigo, muito gentil e educado, mas ele é na verdade um “colaborador”. A razão diz que ele precisa, antes de tudo, ganhar o seu sustento, e ele não está prejudicando ninguém. Outro, ou outros, os grupos, vem na sua direção agressivamente com suas chantagens ideológicas, suas admoestações, seus sermões e seus anátemas que soam como ameaças. Eles marcham com bandeiras e slogans, mas o que separa-os do “poder”?

Pergunta - Bem, o que é poder na sua opinião? Onde ele está? Como pode-se revelar esse poder?

Pasolini – Poder é um sistema educacional que nos divide entre sujeitos e subjugados. É um sistema educacional que nos forma a todos, desde a assim chamada classe dominante até os mais pobres entre nós. É por isso que todos querem as mesmas coisas e todos agem da mesma forma. Se eu tivesse acesso a um conselho administrativo ou a uma corretora de ações, seria isso que eu usaria. De outra forma, eu uso um porrete. E quando eu uso um porrete, eu vou usá-lo de todas as forma para conseguir o que eu quiser. Por que eu quero isso? Por que eu fui ensinado que é uma virtude ter isso. Eu estou apenas exercitando minhas virtudes. Eu sou um assassino, mas eu sou uma boa pessoa.

Pergunta – Você tem sido acusado de ser incapaz de fazer distinção entre política e ideologia. Tem se dito que você perdeu a habilidade de diferenciar os sinais da enorme diferença que existe entre fascistas e não-fascistas, dentro na nova geração.

Pasolini – Era disso que eu estava falando quando mencionei os horários de trens anteriormente. Você já viu aquelas marionetes que fazem as crianças rir imensamente porque seus corpos ficam virados para um lado enquanto suas cabeças olham para o outro? Bem, é assim que eu vejo essa maravilhosa tropa de intelectuais, sociólogos, expertos e jornalistas com suas nobres intenções. As coisas estão acontecendo, mas as cabeças deles estão viradas para outro lado. Eu não estou dizendo que não haja Fascismo. O que eu estou dizendo é: não fala comigo sobre o mar quando estamos nas montanhas. É uma paisagem diferente. Há um desejo de matar aqui. E esse desejo nos amarra todos juntos como irmãos sinistros da falência de todo o sistema social. Eu também adoraria se fosse fácil separar a ovelha negra. Eu também vejo a ovelha negra. Eu vejo uma porção delas. Eu vejo todas elas. Esse é o problema. É como descer ao Inferno. Mas quando eu volto – se eu volto – eu vejo um monte de outras coisas. Eu não estou pedindo para você acreditar em mim. Eu estou dizendo que vocês estão sempre mudando de assunto para evitar encarar a verdade.

Pergunta – E qual é a verdade?

Pasolini – Me desculpe por ter usado essa palavra. O que eu queria dizer era “evidência”. Deixe-me reordenar as coisas. Primeira tragédia: uma edução única, obrigatória e errada, que nos empurra para uma mesma arena em que temos de ter tudo a todo o custo. Nessa arena nós somos empurrados para uma formação de guerra em que alguns carregam canhões e outros, porretes. Aqui nós a temos a velha máxima de dar razão para os mais fracos. Mas o que eu estou dizendo é que, de alguma forma, todos são fracos, porque todos são vítimas. E todos são culpados, porque todos estão dispostos a jogar esse jogo assassino da possessão. Todos aprendemos a ter, possuir e destruir.

“Estamos todos em perigo” - Parte 2

Pergunta – Deixe-me voltar para a primeira pergunta então. Imaginemos que você pode abolir magicamente todas as coisas. Mas você vive de livros e você precisa que exista gente inteligente para ler… consumidores educados de um produto intelectual. Você é um cineasta e, como tal, você precisa de bastante dinheiro (você é muito bem sucedido e é “consumido” avidamente pelo público), mas você precisa também de técnicos, administradores e de toda uma indústria que está no meio disso tudo. Se você remover tudo isso, com um tipo de paleo-catolicismo e neo-monasticismo chinês, o que sobrará?

Pasolini – Tudo. Eu sou o que sobrará, estando vivo, estando no mundo, um lugar para se contemplar, trabalhar e entender. Há centenas de formas de contar histórias, de ouvir as línguas, de reproduzir dialetos. Outros sobrarão com muito mais. Eles podem manter-se como eu, cultos como eu ou ignorantes como eu. O mundo se torna maior, tudo pertence a nós e não há necessidade do mercado de capitais, do conselho administrativo e do porrete. Você vê, no mundo com o qual sonhamos (permita-me que eu me repita: vendo horários de trens de um ano ou trinta anos atrás), há um patrão malévolo com uma cartola e dólares escorrendo de seus bolsos e uma viúva e seus filhos implorando por caridade, como no lindo mundo de Brecht.

Pergunta – Você está dizendo que sente saudades desse mundo?

Pasolini – Não! Minha nostalgia é pelos pobre que lutaram para derrotar o patrão sem se tornar aquele patrão. Como eles foram excluídos de todo, eles permaneceram descolonizados. Eu tenho medo desses revolucionários que são exatamente como os patrões, igualmente criminosos, que querem tudo a qualquer preço. Essa ostentação materialista torna difícil distingüir a que “lado” cada um pertence. Qualquer um que for levado para uma emergência de hospital quase morrendo vai estar muito provavelmente mais interessado no que o médico possa lhe dizer sobre as suas chances de viver do que no que um policial possa lhe relatar sobre os mecanismos do crime. Tenha certeza que eu não estou condenando as intenções nem estou interessado na cadeia de causas e efeitos: eles antes, ele antes ou quem é o primeiro culpado. Eu acho que nós definimos aquilo que você chamou de “situação”. É como a chuva sobre a cidade e as bocas-de-lobo estão entupidas. A água sobe, mas a água é inocente. Não tem a fúria do mar nem a raiva da correnteza de um rio. Mas, por alguma razão, ela sobe ao invés de descer. É a mesma água de tantos poemas adolescentes e de canções como “Singing in the Rain”. Mas ela sobe a afoga você. Se é onde nós estamos, eu vou dizer para não perdermos tempo colocando etiquetas com nomes aqui e ali. Vamos ver como podemos desentupir os canos antes que todos nos afoguemos.

Pergunta – E para chegar lá você quer todos sendo ignorantes e ovelhas felizes e idiotizadas?

Pasolini – Colocar nesses termos seria absurdo. Mas o sistema educacional como ele é não pode criar outra coisa senão gladiadores desesperados. As massas estão crescendo, assim como o desespero e a raiva. Claro que eu lamento uma revolução pura comandada por gente oprimida cujo principal objetivo é obter a liberdade para coordenar as suas próprias vidas. Claro que eu ainda tento imaginar que algo assim possa ser possível nas histórias italiana e mundial. O melhor dessa visão ainda pode inspirar algum dos meus futuros poemas. Mas não pode inspirar o que eu sei ou o que eu vejo na minha frente. Eu quero dizer isso clara e diretamente: eu desço ao Inferno e eu vejo coisas que não perturbam a paz dos outros. Mas tenha cuidado. O Inferno está se erguendo sobre todos vocês. É verdade que há um sonho de uniformidade e de justificação, mas também é verdade que há um desejo e uma necessidade de contra-atacar, de assaltar, atacar, matar, e é um desejo de atinge muitos. A experiência arriscada e privada daqueles que tocaram na “vida de violência” não vai estar disponível por muito tempo. Não se engane. E você é, juntamente com o sistema educacional, com a televisão, com os seus jornais pacifistas, os grandes mantenedores dessa horrenda ordem fundada no conceito da possessão e na idéia da destruição. Por sorte, você parece ficar feliz quando é capaz de colocar uma etiqueta sobre um cadáver com a descrição de como se deu o assassinato. Isso para mim é apenas mais uma das operações da cultura de massas. Desde que nós não conseguimos prevenir algumas coisas de acontencerem, nós nos contentamos em construir abrigos para mantê-las lá, escondidas.

Pergunta - Mas abolir também significar criar outras coisas, a não ser que você também seja um destruidor. O que deve acontecer com os livros, por exemplo? Eu certamente não quero ser uma dessas pessoas que se angustiam mais pela perda da cultura do que pela perda de outras pessoas. Mas essas pessoas salvas na sua forma de ver as coisas, num mundo diferente, não podem mais ser primitivas (uma acusação geralmente direcionada para você). E se nós não quisermos reprimir os “mais avançados”…

Pasolini - O que me faz tremer de medo.

Pergunta - Se nós não quisermos cair novamente em lugares comuns, deve haver um tipo de solução. Por exemplo, na ficção científica, como no Nazismo, queimar livros é sempre o primeiro passo em direção ao massacre. Uma vez que você tenha fechado as escolas e abolido a televisão, como você daria vida e cultura para o mundo?

Pasolini - Eu acho que eu já considerei esse problema em relação à Moravia. Fechar ou abolir na minha forma de falar quer dizer “mudar”. Mas mudar de uma forma dramática e desesperada como a que a situação requer. O que realmente impede um diálogo com respeito à Moravia, mas ainda mais com relação a Firpo, por exemplo, é que de alguma forma nós não estamos vendo a mesma cena, nós não conhecemos as mesmas pessoas e nós não ouvimos as mesmas vozes. Para você e para eles, as coisas acontecem quando viram notícias, belamente escritas, formatadas, editadas e tituladas. Mas o que está sob a superfície de tudo isso? O que está faltando é um cirurgião que tenha a coragem de examinar o tecido e declarar: cavalheiros, isso é um câncer e não é do tipo benigno. O que é um câncer? É algo que muda todas as células, que faz com que elas crescem de uma forma perniciosa, fora de toda a lógica prevista. Um paciente de câncer sonha com um corpo saudável como o que ele tinha antes. Ele é nostálgico, mesmo que antes ele fosse um estúpido desgraçado. Antes do câncer, quero dizer. Antes de mais nada, ele terá que fazer um baita esforço para voltar à imagem que tinha antes. Eu escuto todos os políticos e as suas pequenas fórmulas e isso me deixa insano. Eles não parecem saber de que país eles estão falando; eles são tão distante da Terra quanto a Lua. E o mesmo cabe dizer dos escritores, sociólogos e expertos de todos os tipos.

Pergunta - Por que você acha que as coisas são mais evidentes para você?

Pasolini - Eu não quero falar mais sobre mim mesmo. Talvez eu já tenha falado demais. Todos sabem que eu já paguei pelas minhas experiências pessoalmente. Mas também existem os meus livros e os meus filmes. Talvez eu esteja errado, mas eu vou seguir dizendo que estamos todos em perigo.

Pergunta - Pasolini, se é assim que você vê a vida, eu não sei se você vai aceitar responder à próxima pergunta: como você espera evitar o risco e o perigo involvidos?

Fica tarde, Pasolini não acende nenhuma luz e começa a ficar difícil tomar notas. Nós olhamos para o que eu havia escrito. Então, ele pede que eu deixe a lista de perguntas restantes com ele.

Pasolini – Existem algumas frases que parecem um pouco absolutas demais. Deixe-me pensar sobre isso, olhar para isso. E deixe eu bolar uma resposta memorável. Eu tenho uma coisa na cabeça para a sua pergunta. Eu acho mais fácil escrever do que falar. Eu vou passar para você as minhas anotações amanhã de manhã.

No dia seguinte, um domingo, o corpo de Pasolini estava no necrotério da polícia de Roma.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Inland Empire (David Lynch, POL/FRA/EUA, 2006)


O lugar mais estranho e inóspito de Hollywood é a mente de David Lynch. Prova disso é o que esta mente produziu em Inland Empire, traduzido para O Império dos Sonhos. O filme segue com o projeto de Lynch de superar os limites da experiência em cinema para algo a mais do visual e da história. Algo que beire a filosofia aplicada ao conhecimento dos meandros da mente humana explorada através do cinema.

Deve-se ir aos filmes de Lynch disposto a ter a cabeça revirada pelo gênio atrás da câmera. Deve-se permitir que todas as nossas normas de compreensão sejam desarticuladas. É necessário tentar antes de mais nada explorar a própria gramática visual do cineasta com suas nuances de ritmo.

Pois Lynch está filmando como se sonhasse. Assim como quando dormimos, nos filmes dele uma circunstância pode passar em um átimo de segundo ou pode se desmembrar, se repetir e levar dezenas de minutos acontecendo. Nosso exercício é desvendar essa linguagem e nos deleitarmos com a experiência única do filme.

Mais estranho que o próprio filme, totalmente realizado em vídeo, é o ambiente de criação de David Lynch. Ele foi captado durante os dois anos de produção e filmagem de Inland Empire e virou um documentário. Lançado no ano passado, ele ganhou o prêmio de melhor filme digital no Festival de Veneza.

Nas últimas três décadas, Lynch criou uma sólida cinematografia baseada nessa estranheza e nesse desejo de superar o próprio cinema para contar as suas histórias. O bebê deformado de Eraserhead (1977), a deformidade física chegando ao ápice em The Elephant Man (1980), o surrealismo anos 80 de Blue Velvet (1986), o mistério policial em Twin Peaks, e o cume na obra-prima cinematográfica que é Mulholand Dr. (2001).

Inland Empire "conta" (a respeito de Lynch nunca podemos estar totalmente certo disso) a história de uma atriz pornô em final de carreira, Nikki Grace (Laura Dern, em sua terceira parceria com Lynch), que recebe uma estranha visita. Essa vizinha sem nome (vivida por Grace Zabriskie), com um forte sotaque do leste europeu, passa a contar a Nikki o enredo de uma história que dará início à toda a série de "absurdos" e "estranhezas" do filme.

Logo depois da conversa com a estranha vizinha, Nikki é convidada para participar de um novo filme (On High in Blue Tomorrows), a ser dirigido por Kingsley Stewart (Jeremy Irons), e co-estrelado por Devon Berk (Justin Theroux). Um melodrama, esse filme lançará os atores em um triângulo amoroso com a personagem vivida por Julia Ormond. Aos poucos os mundos real e fictício passam a se confundir na cabeça de Nikki. E nós mesmos deixamos de perceber claramente quando observamos algo fantasioso ou real.

Nesse mundo pictórico construído por Lynch para ser habitado pela sua personagem principal, vemos uma série de referências de estilo. Ali, Nikki percorre diversas salas tentando entender a si própria. Cada sala tem uma característica única. Cortinas vermelhas, estampas florais, texturas de parede. Uma mulher polenesa que assiste a uma televisão que só passa estática. Uma outra sala que parece um museu europeu, tamanha a sofisticação da decoração. Todos esses cenários, ricos em suas cargas narrativas são responsáveis pelo sucesso alcançado por Lynch para transmitir as diferentes atmosferas do filme. Mesmo que não entendamos o que se passa na tela, isso deixa de ser importante devido à própria experiência sensorial que começamos a sentir. Esse é o grande barato do filme.

Inland Empire deixa de lado o enredo de um protagonista que evolui dentro de uma história. A série de cenas que soam aleatórias, as situações absurdas e aparentemente incoerentes deixam de ser importantes por elas mesmas. Não há um encadeamento lógico. E é nisso que Lynch se torna genial: ao varar os limites do cinema e deixar que as diversas histórias passem a ter apenas inícios. Podemos imaginar o que aconteceu antes ou o que ocorrerá depois. Ou podemos apenas esquecer. Como os sonhos. E como nos sonhos, ele parece ser estar muito perto da realidade.

Numa entrevista dada durante a produção do fime, Lynch disse que estava filmando sem um roteiro terminado, no que é fácil de acreditar. Como na prática surrealista de escrever automaticamente, o filme soa como se tivesse sido feito aleatoriamente.

Inland Empire não é, por último, um filme para se amar. É um obra-prima para ser admirada. E para tentar decifrar, mesmo que isso possa parecer impossível. O prazer dele pode ser fugidio ou mesmo frustante para a maioria das pessoas (foi para mim nessa primeira vez que o assisti). É um filme que não se dá a uma aproximação muito íntima. Mas assistido com atenção, ele se transforma em algo engraçado e, sem dúvida, uma das experiências estéticas mais interessantes que o cinema já produziu.