Essa entrevista aconteceu na tarde do sábado 1o de novembro de 1975, poucas horas antes do assassinato do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini. O título foi sugerido pelo próprio Pasolini ao entrevistador Furio Colombo. No final da conversa, Pasolini disse ao entrevistador: “Eis a semente de tudo, o sentido de todas as coisas. Você nunca sabe quem, nesse exato momento, pode estar pensando em matar você. Use isso como título da entrevista, se quiser: ‘Estamos todos em perigo’”.
Pergunta - Pasolini, nos seus artigos você já deu diversas declarações sobre as coisas que detesta. Você já levantou bandeiras solitárias contra tantas coisas: instituições, marcas, pessoas e poder. Para simplificar as coisas, eu vou chamar tudo isso de “situação”, que seria todas as coisas contra as quais você já se bateu. Permita-me propor uma objeção. A “situação”, com todos os males que você vê nela, também tem todos os elementos que fazem Pasolini possível. O que eu quero dizer é que, mesmo com todo o seu talento e mérito, as ferramentas são dadas pela “situação”: publicidade, cinema, organização, mesmo objetos. Façamos de conta que você é mágico. Com um pequeno gesto seu, tudo que você detesta desaparecesse. O que seria de você então? Não ficaria sozinho e sem todas as ferramentas de expressão que necessita?
Pier Paolo Pasolini - Eu entendo. Mas eu não apenas tento alcançar esse estágio de mágica, eu acredito nele. Eu acredito que se possa ficar batendo com um dedo em uma parede até que toda a casa venha abaixo. Podemos ver um pequeno exemplo disso no Partido Radical [partido italiano de extrema esquerda fundado em 1955 e tranformado, em 1989, no Partido Radical Transnacional], um amontado de gente capaz de influenciar todo o país. Você bem sabe que eu não concordo com eles, mas eu estou indo agora mesmo para a conferência deles. Mais do que tudo, é a História que nos dá os melhores exemplos. Contestação tem sempre sido de fundamental importância. Santos, heremitas e intelectuais, os poucos que fizeram História, foram aqueles que disseram “não”, não foram os assistentes dos nobres e dos cardeais. Então, para ser direto, contestação deve ser em grande escala, ampla e total, “absurda” e sem bom senso. Não pode apenas se apresentar sobre esse e aquele ponto. Eichmann tinha muito bom senso. O que faltou para ele então? Ele não disse “não” de forma clara e direta logo no início, quando ele era ainda um mero administrador, um burocrata. Ele devia ter dito para algum dos seus amigos: “Eu não gosto mesmo de Himmler”. Ele devia ter sussurrado alguma coisa, vazado algo como acontece em agências de publicidade, em redações de jornal, no segundo escalão de governos. Mas ele nunca parou a máquina. Então há três pontos a se ver: o que é isso que você chama de “situação”, por que devemos escolher saldar ou destruí-la, e como.
Pergunta - Bem, descreva a “situação”, então. Você sabe muito bem que as suas observações são como o sol brilhando através da poeira do ar. É uma imagem bonita, mas as coisas às vezes são pouco claras.
Pasolini - Eu agradeço pela imagem, mas espero bem menos do que isso. Tudo que eu quero é que você olhe em volta e note a tragédia. Qual é a tragédia? É que não há mais seres humanos; só existem algumas máquinas estranhas que colidem umas com as outras. E nós, intelectuais, olhamos para horários de trens antigos e falamos: “Estranho, não deviam esses trens seguir por esse caminho. Como eles puderam bater desse jeito? Ou o engenheiro ficou louco ou ele é um assassino. Ou, melhor ainda, tudo isso é uma conspiração”. Nós sempre gostamos de teorias da conspiração, porque elas nos aliviam de ter de lidar com a verdade. Não seria maravilhosos se, enquanto nós conversamos aqui, alguém no porão estivesse planejando nos matar? É tão fácil, é tão simples, e é a resistência. Nós podemos perder alguns amigos, mas nós acabaremos juntando as nossas forças e varrendo todos para fora. Um pouco para nós, um pouco para eles, você não acha? E eu sei que quando eles mostram Paris em chamas na TV, todo mundo senta com lágrimas nos olhos, desejando apenas que a História se repita, mas de forma limpa e bonita. O efeito do tempo é que ele lava tudo, deixa tudo limpo, como a chuva sobre as paredes das casas. É simples, eu estou deste lado e você está do outro. Não vamos fazer piadas sobre o sangue e a dor com que as pessoas pagaram para ter opções. Mas vamos admitir que era mais fácil lutar naquela época. Com coragem e consciência, um homem normal sempre poderia rejeitar uma Salò fascista ou uma SS nazista, mesmo que fosse no seu interior (onde todas as revoluções têm início). Mas hoje em dia é diferente. Alguém pode chegar caminhando na sua direção vestido como um amigo, muito gentil e educado, mas ele é na verdade um “colaborador”. A razão diz que ele precisa, antes de tudo, ganhar o seu sustento, e ele não está prejudicando ninguém. Outro, ou outros, os grupos, vem na sua direção agressivamente com suas chantagens ideológicas, suas admoestações, seus sermões e seus anátemas que soam como ameaças. Eles marcham com bandeiras e slogans, mas o que separa-os do “poder”?
Pergunta - Bem, o que é poder na sua opinião? Onde ele está? Como pode-se revelar esse poder?
Pasolini – Poder é um sistema educacional que nos divide entre sujeitos e subjugados. É um sistema educacional que nos forma a todos, desde a assim chamada classe dominante até os mais pobres entre nós. É por isso que todos querem as mesmas coisas e todos agem da mesma forma. Se eu tivesse acesso a um conselho administrativo ou a uma corretora de ações, seria isso que eu usaria. De outra forma, eu uso um porrete. E quando eu uso um porrete, eu vou usá-lo de todas as forma para conseguir o que eu quiser. Por que eu quero isso? Por que eu fui ensinado que é uma virtude ter isso. Eu estou apenas exercitando minhas virtudes. Eu sou um assassino, mas eu sou uma boa pessoa.
Pergunta – Você tem sido acusado de ser incapaz de fazer distinção entre política e ideologia. Tem se dito que você perdeu a habilidade de diferenciar os sinais da enorme diferença que existe entre fascistas e não-fascistas, dentro na nova geração.
Pasolini – Era disso que eu estava falando quando mencionei os horários de trens anteriormente. Você já viu aquelas marionetes que fazem as crianças rir imensamente porque seus corpos ficam virados para um lado enquanto suas cabeças olham para o outro? Bem, é assim que eu vejo essa maravilhosa tropa de intelectuais, sociólogos, expertos e jornalistas com suas nobres intenções. As coisas estão acontecendo, mas as cabeças deles estão viradas para outro lado. Eu não estou dizendo que não haja Fascismo. O que eu estou dizendo é: não fala comigo sobre o mar quando estamos nas montanhas. É uma paisagem diferente. Há um desejo de matar aqui. E esse desejo nos amarra todos juntos como irmãos sinistros da falência de todo o sistema social. Eu também adoraria se fosse fácil separar a ovelha negra. Eu também vejo a ovelha negra. Eu vejo uma porção delas. Eu vejo todas elas. Esse é o problema. É como descer ao Inferno. Mas quando eu volto – se eu volto – eu vejo um monte de outras coisas. Eu não estou pedindo para você acreditar em mim. Eu estou dizendo que vocês estão sempre mudando de assunto para evitar encarar a verdade.
Pergunta – E qual é a verdade?
Pasolini – Me desculpe por ter usado essa palavra. O que eu queria dizer era “evidência”. Deixe-me reordenar as coisas. Primeira tragédia: uma edução única, obrigatória e errada, que nos empurra para uma mesma arena em que temos de ter tudo a todo o custo. Nessa arena nós somos empurrados para uma formação de guerra em que alguns carregam canhões e outros, porretes. Aqui nós a temos a velha máxima de dar razão para os mais fracos. Mas o que eu estou dizendo é que, de alguma forma, todos são fracos, porque todos são vítimas. E todos são culpados, porque todos estão dispostos a jogar esse jogo assassino da possessão. Todos aprendemos a ter, possuir e destruir.