sexta-feira, 21 de dezembro de 2007
Inland Empire (David Lynch, POL/FRA/EUA, 2006)
O lugar mais estranho e inóspito de Hollywood é a mente de David Lynch. Prova disso é o que esta mente produziu em Inland Empire, traduzido para O Império dos Sonhos. O filme segue com o projeto de Lynch de superar os limites da experiência em cinema para algo a mais do visual e da história. Algo que beire a filosofia aplicada ao conhecimento dos meandros da mente humana explorada através do cinema.
Deve-se ir aos filmes de Lynch disposto a ter a cabeça revirada pelo gênio atrás da câmera. Deve-se permitir que todas as nossas normas de compreensão sejam desarticuladas. É necessário tentar antes de mais nada explorar a própria gramática visual do cineasta com suas nuances de ritmo.
Pois Lynch está filmando como se sonhasse. Assim como quando dormimos, nos filmes dele uma circunstância pode passar em um átimo de segundo ou pode se desmembrar, se repetir e levar dezenas de minutos acontecendo. Nosso exercício é desvendar essa linguagem e nos deleitarmos com a experiência única do filme.
Mais estranho que o próprio filme, totalmente realizado em vídeo, é o ambiente de criação de David Lynch. Ele foi captado durante os dois anos de produção e filmagem de Inland Empire e virou um documentário. Lançado no ano passado, ele ganhou o prêmio de melhor filme digital no Festival de Veneza.
Nas últimas três décadas, Lynch criou uma sólida cinematografia baseada nessa estranheza e nesse desejo de superar o próprio cinema para contar as suas histórias. O bebê deformado de Eraserhead (1977), a deformidade física chegando ao ápice em The Elephant Man (1980), o surrealismo anos 80 de Blue Velvet (1986), o mistério policial em Twin Peaks, e o cume na obra-prima cinematográfica que é Mulholand Dr. (2001).
Inland Empire "conta" (a respeito de Lynch nunca podemos estar totalmente certo disso) a história de uma atriz pornô em final de carreira, Nikki Grace (Laura Dern, em sua terceira parceria com Lynch), que recebe uma estranha visita. Essa vizinha sem nome (vivida por Grace Zabriskie), com um forte sotaque do leste europeu, passa a contar a Nikki o enredo de uma história que dará início à toda a série de "absurdos" e "estranhezas" do filme.
Logo depois da conversa com a estranha vizinha, Nikki é convidada para participar de um novo filme (On High in Blue Tomorrows), a ser dirigido por Kingsley Stewart (Jeremy Irons), e co-estrelado por Devon Berk (Justin Theroux). Um melodrama, esse filme lançará os atores em um triângulo amoroso com a personagem vivida por Julia Ormond. Aos poucos os mundos real e fictício passam a se confundir na cabeça de Nikki. E nós mesmos deixamos de perceber claramente quando observamos algo fantasioso ou real.
Nesse mundo pictórico construído por Lynch para ser habitado pela sua personagem principal, vemos uma série de referências de estilo. Ali, Nikki percorre diversas salas tentando entender a si própria. Cada sala tem uma característica única. Cortinas vermelhas, estampas florais, texturas de parede. Uma mulher polenesa que assiste a uma televisão que só passa estática. Uma outra sala que parece um museu europeu, tamanha a sofisticação da decoração. Todos esses cenários, ricos em suas cargas narrativas são responsáveis pelo sucesso alcançado por Lynch para transmitir as diferentes atmosferas do filme. Mesmo que não entendamos o que se passa na tela, isso deixa de ser importante devido à própria experiência sensorial que começamos a sentir. Esse é o grande barato do filme.
Inland Empire deixa de lado o enredo de um protagonista que evolui dentro de uma história. A série de cenas que soam aleatórias, as situações absurdas e aparentemente incoerentes deixam de ser importantes por elas mesmas. Não há um encadeamento lógico. E é nisso que Lynch se torna genial: ao varar os limites do cinema e deixar que as diversas histórias passem a ter apenas inícios. Podemos imaginar o que aconteceu antes ou o que ocorrerá depois. Ou podemos apenas esquecer. Como os sonhos. E como nos sonhos, ele parece ser estar muito perto da realidade.
Numa entrevista dada durante a produção do fime, Lynch disse que estava filmando sem um roteiro terminado, no que é fácil de acreditar. Como na prática surrealista de escrever automaticamente, o filme soa como se tivesse sido feito aleatoriamente.
Inland Empire não é, por último, um filme para se amar. É um obra-prima para ser admirada. E para tentar decifrar, mesmo que isso possa parecer impossível. O prazer dele pode ser fugidio ou mesmo frustante para a maioria das pessoas (foi para mim nessa primeira vez que o assisti). É um filme que não se dá a uma aproximação muito íntima. Mas assistido com atenção, ele se transforma em algo engraçado e, sem dúvida, uma das experiências estéticas mais interessantes que o cinema já produziu.
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