segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

“Estamos todos em perigo” - Parte 2

Pergunta – Deixe-me voltar para a primeira pergunta então. Imaginemos que você pode abolir magicamente todas as coisas. Mas você vive de livros e você precisa que exista gente inteligente para ler… consumidores educados de um produto intelectual. Você é um cineasta e, como tal, você precisa de bastante dinheiro (você é muito bem sucedido e é “consumido” avidamente pelo público), mas você precisa também de técnicos, administradores e de toda uma indústria que está no meio disso tudo. Se você remover tudo isso, com um tipo de paleo-catolicismo e neo-monasticismo chinês, o que sobrará?

Pasolini – Tudo. Eu sou o que sobrará, estando vivo, estando no mundo, um lugar para se contemplar, trabalhar e entender. Há centenas de formas de contar histórias, de ouvir as línguas, de reproduzir dialetos. Outros sobrarão com muito mais. Eles podem manter-se como eu, cultos como eu ou ignorantes como eu. O mundo se torna maior, tudo pertence a nós e não há necessidade do mercado de capitais, do conselho administrativo e do porrete. Você vê, no mundo com o qual sonhamos (permita-me que eu me repita: vendo horários de trens de um ano ou trinta anos atrás), há um patrão malévolo com uma cartola e dólares escorrendo de seus bolsos e uma viúva e seus filhos implorando por caridade, como no lindo mundo de Brecht.

Pergunta – Você está dizendo que sente saudades desse mundo?

Pasolini – Não! Minha nostalgia é pelos pobre que lutaram para derrotar o patrão sem se tornar aquele patrão. Como eles foram excluídos de todo, eles permaneceram descolonizados. Eu tenho medo desses revolucionários que são exatamente como os patrões, igualmente criminosos, que querem tudo a qualquer preço. Essa ostentação materialista torna difícil distingüir a que “lado” cada um pertence. Qualquer um que for levado para uma emergência de hospital quase morrendo vai estar muito provavelmente mais interessado no que o médico possa lhe dizer sobre as suas chances de viver do que no que um policial possa lhe relatar sobre os mecanismos do crime. Tenha certeza que eu não estou condenando as intenções nem estou interessado na cadeia de causas e efeitos: eles antes, ele antes ou quem é o primeiro culpado. Eu acho que nós definimos aquilo que você chamou de “situação”. É como a chuva sobre a cidade e as bocas-de-lobo estão entupidas. A água sobe, mas a água é inocente. Não tem a fúria do mar nem a raiva da correnteza de um rio. Mas, por alguma razão, ela sobe ao invés de descer. É a mesma água de tantos poemas adolescentes e de canções como “Singing in the Rain”. Mas ela sobe a afoga você. Se é onde nós estamos, eu vou dizer para não perdermos tempo colocando etiquetas com nomes aqui e ali. Vamos ver como podemos desentupir os canos antes que todos nos afoguemos.

Pergunta – E para chegar lá você quer todos sendo ignorantes e ovelhas felizes e idiotizadas?

Pasolini – Colocar nesses termos seria absurdo. Mas o sistema educacional como ele é não pode criar outra coisa senão gladiadores desesperados. As massas estão crescendo, assim como o desespero e a raiva. Claro que eu lamento uma revolução pura comandada por gente oprimida cujo principal objetivo é obter a liberdade para coordenar as suas próprias vidas. Claro que eu ainda tento imaginar que algo assim possa ser possível nas histórias italiana e mundial. O melhor dessa visão ainda pode inspirar algum dos meus futuros poemas. Mas não pode inspirar o que eu sei ou o que eu vejo na minha frente. Eu quero dizer isso clara e diretamente: eu desço ao Inferno e eu vejo coisas que não perturbam a paz dos outros. Mas tenha cuidado. O Inferno está se erguendo sobre todos vocês. É verdade que há um sonho de uniformidade e de justificação, mas também é verdade que há um desejo e uma necessidade de contra-atacar, de assaltar, atacar, matar, e é um desejo de atinge muitos. A experiência arriscada e privada daqueles que tocaram na “vida de violência” não vai estar disponível por muito tempo. Não se engane. E você é, juntamente com o sistema educacional, com a televisão, com os seus jornais pacifistas, os grandes mantenedores dessa horrenda ordem fundada no conceito da possessão e na idéia da destruição. Por sorte, você parece ficar feliz quando é capaz de colocar uma etiqueta sobre um cadáver com a descrição de como se deu o assassinato. Isso para mim é apenas mais uma das operações da cultura de massas. Desde que nós não conseguimos prevenir algumas coisas de acontencerem, nós nos contentamos em construir abrigos para mantê-las lá, escondidas.

Pergunta - Mas abolir também significar criar outras coisas, a não ser que você também seja um destruidor. O que deve acontecer com os livros, por exemplo? Eu certamente não quero ser uma dessas pessoas que se angustiam mais pela perda da cultura do que pela perda de outras pessoas. Mas essas pessoas salvas na sua forma de ver as coisas, num mundo diferente, não podem mais ser primitivas (uma acusação geralmente direcionada para você). E se nós não quisermos reprimir os “mais avançados”…

Pasolini - O que me faz tremer de medo.

Pergunta - Se nós não quisermos cair novamente em lugares comuns, deve haver um tipo de solução. Por exemplo, na ficção científica, como no Nazismo, queimar livros é sempre o primeiro passo em direção ao massacre. Uma vez que você tenha fechado as escolas e abolido a televisão, como você daria vida e cultura para o mundo?

Pasolini - Eu acho que eu já considerei esse problema em relação à Moravia. Fechar ou abolir na minha forma de falar quer dizer “mudar”. Mas mudar de uma forma dramática e desesperada como a que a situação requer. O que realmente impede um diálogo com respeito à Moravia, mas ainda mais com relação a Firpo, por exemplo, é que de alguma forma nós não estamos vendo a mesma cena, nós não conhecemos as mesmas pessoas e nós não ouvimos as mesmas vozes. Para você e para eles, as coisas acontecem quando viram notícias, belamente escritas, formatadas, editadas e tituladas. Mas o que está sob a superfície de tudo isso? O que está faltando é um cirurgião que tenha a coragem de examinar o tecido e declarar: cavalheiros, isso é um câncer e não é do tipo benigno. O que é um câncer? É algo que muda todas as células, que faz com que elas crescem de uma forma perniciosa, fora de toda a lógica prevista. Um paciente de câncer sonha com um corpo saudável como o que ele tinha antes. Ele é nostálgico, mesmo que antes ele fosse um estúpido desgraçado. Antes do câncer, quero dizer. Antes de mais nada, ele terá que fazer um baita esforço para voltar à imagem que tinha antes. Eu escuto todos os políticos e as suas pequenas fórmulas e isso me deixa insano. Eles não parecem saber de que país eles estão falando; eles são tão distante da Terra quanto a Lua. E o mesmo cabe dizer dos escritores, sociólogos e expertos de todos os tipos.

Pergunta - Por que você acha que as coisas são mais evidentes para você?

Pasolini - Eu não quero falar mais sobre mim mesmo. Talvez eu já tenha falado demais. Todos sabem que eu já paguei pelas minhas experiências pessoalmente. Mas também existem os meus livros e os meus filmes. Talvez eu esteja errado, mas eu vou seguir dizendo que estamos todos em perigo.

Pergunta - Pasolini, se é assim que você vê a vida, eu não sei se você vai aceitar responder à próxima pergunta: como você espera evitar o risco e o perigo involvidos?

Fica tarde, Pasolini não acende nenhuma luz e começa a ficar difícil tomar notas. Nós olhamos para o que eu havia escrito. Então, ele pede que eu deixe a lista de perguntas restantes com ele.

Pasolini – Existem algumas frases que parecem um pouco absolutas demais. Deixe-me pensar sobre isso, olhar para isso. E deixe eu bolar uma resposta memorável. Eu tenho uma coisa na cabeça para a sua pergunta. Eu acho mais fácil escrever do que falar. Eu vou passar para você as minhas anotações amanhã de manhã.

No dia seguinte, um domingo, o corpo de Pasolini estava no necrotério da polícia de Roma.

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